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Crime de Injúria Racial vs. Racismo.

1. Introdução: Contextualização do Caso e Relevância Jurídica.

O presente artigo examina minuciosamente o julgamento da Apelação Criminal nº 1517754-15.2023.8.26.0602, que discute os limites entre injúria racial e crime de racismo no ordenamento jurídico brasileiro.

O caso em questão envolve um servidor público de 72 anos que, durante um atendimento online, fez um comentário considerado ofensivo sobre o cabelo crespo de uma advogada, comparando-o a uma “vassoura de piaçava”.

A discussão central gira em torno da tipificação penal adequada, considerando os elementos subjetivos do crime e a intenção discriminatória.

Além disso, o caso levanta questões sobre a liberdade de expressão, a proporcionalidade das penas e os critérios para configuração do dolo específico em crimes dessa natureza.


2. Fundamentação Legal: Distinção Entre Injúria Racial e Racismo.

2.1 Injúria Racial (Art. 140, §3º, do Código Penal).

A injúria racial está prevista no artigo 140, §3º, do Código Penal, que estabelece:

“Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena – reclusão de 1 a 3 anos e multa.”

Elementos essenciais para sua configuração:

  • Ofensa à honra subjetiva (dignidade ou decoro).
  • Utilização de termos ou expressões ligados a raça, cor, etnia, etc.
  • Dolo específico: intenção de ofender com base em características discriminatórias.

2.2 Crime de Racismo (Lei nº 7.716/1989).

O racismo, por sua vez, está previsto na Lei nº 7.716/1989, que define condutas discriminatórias contra coletividades (não apenas indivíduos). É considerado crime inafiançável e imprescritível (Art. 5º, XLII, CF/88).

Principais diferenças:

CritérioInjúria RacialRacismo
Natureza do crimeOfensa individualDiscriminação coletiva
Previsão legalArt. 140, §3º, CPLei 7.716/1989
PrescritibilidadePrescritívelImprescritível
FiançaPermitidaInafiançável

3. Análise do Caso Concreto: Elementos Objetivos e Subjetivos.

3.1 Narrativa dos Fatos.

  • O réu, durante um atendimento virtual, fez um comentário à estagiária sobre o cabelo da vítima: “Bonito? Mais parece uma vassoura de piaçava.”
  • A vítima ouviu o comentário acidentalmente devido ao microfone ligado.
  • O réu alegou que não houve intenção discriminatória, mas sim uma “brincadeira infeliz”.

3.2 Discussão Sobre o Dolo Específico.

Conforme a doutrina de Cezar Roberto Bitencourt:

“Para a configuração da injúria por preconceito, é fundamental, além do dolo representado pela vontade livre e consciente de injuriar, a presença do elemento subjetivo especial do tipo, constituído pelo especial fim de discriminar o ofendido por razão de raça, cor, etnia, religião ou origem.”

Pontos controversos no caso:

  1. Direcionamento da ofensa: O comentário não foi dirigido à vítima, mas sim a uma terceira pessoa.
  2. Contexto da fala: O réu não fez referência explícita à raça, mas sim a uma característica estética (cabelo crespo).
  3. Intenção discriminatória: Não há provas de que o agente agiu com o propósito de humilhar a vítima por sua cor ou etnia.

3.3 Jurisprudência Correlata.

O STJ já decidiu em casos semelhantes que:

  • Comparações pejorativas ao cabelo afro podem configurar injúria racial (REsp 1.973.291/SP).
  • É necessário analisar o contexto e a real intenção do agente (HC 472.227/SP).


4. Argumentos da Defesa e da Acusação.

4.1 Tese da Defesa.

  • Ausência de dolo discriminatório: O comentário foi uma crítica estética, não racial.
  • Falta de direcionamento: A frase foi dita em conversa privada com a estagiária.
  • Proporcionalidade: A pena para injúria racial (1 a 3 anos) seria excessiva para o caso.

4.2 Tese da Acusação.

  • Ofensa indireta: Mesmo não sendo direcionada, a vítima se sentiu humilhada.
  • Reforço de estereótipos: A comparação com “piaçava” estaria associada a preconceitos contra cabelos afro.
  • Precedentes: Jurisprudência do STJ que tipifica como injúria racial comentários similares.


5. Conclusão e Voto do Desembargador.

5.1 Decisão Fundamentada.

O Desembargador José Damião Pinheiro Machado votou pela absolvição do réu, com base nos seguintes argumentos:

  1. Atipicidade da conduta: Não há elementos suficientes para caracterizar o dolo racial.
  2. Falta de intenção discriminatória: O comentário foi infeliz, mas não configurou injúria racial.
  3. Princípio da proporcionalidade: Aplicar pena de injúria racial seria desproporcional ao caso.

5.2 Impacto Jurídico do Julgamento.

O caso reforça a necessidade de:

  • Análise cuidadosa do contexto em casos de suposta injúria racial.
  • Distinção clara entre ofensa estética e discriminação racial.
  • Evitar criminalização excessiva de condutas sem intenção preconceituosa.

6. Considerações Finais.


O caso analisado demonstra a complexidade em diferenciar atos discriminatórios de comentários infelizes sem intenção preconceituosa.

A decisão do Tribunal reforça a importância de uma análise contextualizada, evitando tanto a banalização do racismo quanto a criminalização indevida de condutas não intencionais.

O equilíbrio entre repressão ao racismo e garantia do devido processo legal permanece como um desafio constante no Direito Penal brasileiro.

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